EUTANÁSIA E ESTADO DE DIREITO

Sofia Ribeiro

A votação da Eutanásia na Assembleia da República suscitou, natural e felizmente, um aceso debate na sociedade. O Estado é laico, mas a sociedade e os seus representantes políticos não, e numa questão tão sensível sob o ponto de vista dogmático, seja religioso ou ideológico, é importante conhecer os princípios e crenças de cada um, a bem da transparência e da proximidade dos cidadãos aos políticos, o que caracteriza o Povo que somos e a Democracia. Não obstante, foram proferidas afirmações por responsáveis políticos e religiosos que põem em causa o próprio Estado de direito democrático e que não podem passar incólumes.

Em primeiro lugar, é inaceitável a contestação do direito que assiste à Assembleia da República, mesmo que eleita apenas por uma estreita margem da população, face aos elevadíssimos níveis de abstenção. O espectro de Deputados que temos reflete apenas a vontade dos Portugueses que livremente expressaram o seu voto, mas vincula todos, mesmo aqueles que se demitiram da sua obrigação cívica. Reduzir a legitimidade da Assembleia da República aos níveis de participação eleitoral alegando uma falta de apoio popular constitui um atentado à própria Democracia, próprio de regimes ditatoriais, e pode ser, inclusivamente, um incentivo à abstenção. Afinal, talvez os Deputados e os Partidos políticos não sejam assim tão iguais quanto propalado. O próprio facto de alguns não terem inscrito no seu programa de candidatura a questão da Eutanásia indicia o seu posicionamento de defesa da pluralidade de opinião, neste caso em concreto.

Na mesma linha de raciocínio, são de rejeitar as afirmações de que a verdadeira legitimidade cabe exclusivamente ao Presidente da República, com o argumento falacioso de que este foi o único diretamente eleito pelos Portugueses. A constituição de ambos os órgãos de soberania faz-se por sufrágio direto, sejam os círculos eleitorais plurinominais ou uninominais, o que significa que todos os Deputados da Nação são eleitos diretamente pelos Portugueses. Acresce que a defesa no voto no nome de um Deputado nem sequer é colidente com a manutenção da existência da eleição numa lista de Deputados e coexiste em muitos países. No respeito pela separação de poderes dos órgãos de soberania nacional e no âmbito das suas competências, há um papel que cabe ao Presidente da República e outro à Assembleia da República, igualmente legitimados pela Constituição da República Portuguesa e pelos votos dos eleitores.

É, ainda, de contestar a desvalorização da pertinência da constituição de um referendo sobre a matéria. O argumento de que são os vencidos na votação que colocam essa possibilidade por esta mesma razão evidencia o receio que os apoiantes da eutanásia têm de que um referendo possa vincular uma decisão em sentido contrário. Por outro lado, a alegação de que um referendo sobre a matéria geraria um ruído caracterizado por preconceitos e desinformação constitui, por si só, um ataque à Democracia e à legitimidade da participação popular.

Quer se aprove ou não, a título pessoal, a Eutanásia, é fundamental mantermos a racionalidade e garantirmos o bom funcionamento dos nossos órgãos de soberania.

Sofia Ribeiro
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