RESGATA O ORGULHO DAS TUAS RAÍZES

No sopé sereno da Praia da Vitória, onde a Serra do Facho se debruça em silêncio, mora um lugar que respira devagar. Ali, entre o sussurro das aves e o hálito antigo da terra, o Paul estende-se como um espelho escondido, refletindo não só o céu, mas o equilíbrio delicado entre o natural e o urbano.

Não há multidões nem palmas — há asas. Há passos lentos de quem observa e aprende. Há silêncios cheios de canto.

Foi o tempo, paciente, que o moldou. Nascido de um graben geológico, protegido por dunas de areia e memórias, este refúgio molhado aprendeu a guardar segredos: os segredos da água, que não cessa de chegar; os segredos das aves, que aqui encontram pouso entre jornadas longas; os segredos das raízes, que dançam escondidas sob a lama fértil.

Antigamente, talvez se passasse por ele sem o notar — um charco entre serras e marés. Mas hoje, o mundo o reconhece: RAMSAR sussurra o seu nome entre as zonas húmidas mais preciosas do planeta. E a sua pequena dimensão não diminui o seu valor. Antes o eleva — como um poema breve que carrega o mundo inteiro num só verso.

Ali, o real e o selvagem coabitam com a cidade. E a cidade aprende a ser mais humana por saber abrigar o não-humano. Crianças aprendem a ouvir os cantos que vêm da água. Cientistas recolhem dados. Corações colhem paz.

O Paul não se impõe — convida. Não grita — encanta. É uma lição viva sobre o que resta do paraíso, e sobre o que ainda podemos salvar, se soubermos ver.

Entre dunas e serras, entre a pressa dos dias e a lentidão da vida, o Paul permanece — humilde, vital, eterno.


A tourada à corda é um daqueles traços culturais que correm nas veias da ilha Terceira como lava antiga, pulsando há séculos na alma do seu povo.

Há registos que a colocam em cena desde 1622, atravessando tempos de reis, revoluções, terremotos e modernidades, sem nunca perder o compasso do coração popular.

Na sua essência, é um espetáculo de rua, onde o touro bravo, amarrado por uma longa corda segura por dois grupos de cinco pastores, é desafiado — não pela violência, mas pela astúcia, pela adrenalina, pelo riso nervoso, pela dança entre coragem e prudência. Aqui, ninguém fere o touro. E o touro, por sua vez, não esquece de ser rei da ocasião.

Mas se há arraial onde esta tradição ganha um brilho particular, esse arraial é o areal da Praia da Vitória.

Ali, onde o mar beija a cidade e o sol desenha sombras douradas no chão, a tourada à corda transforma-se em algo quase mítico. É diferente. É livre. É leve e brutal ao mesmo tempo. A areia solta os passos e suaviza as quedas, mas não amortece o entusiasmo que cresce em ondas, como as da baía vizinha.

Não se sabe ao certo quando começaram as touradas no areal, mas há registos de 1921 e há décadas que fazem parte do imaginário das Festas da Praia, tornando-se ponto alto do verão terceirense. Nessa tarde mágica, o areal enche-se de gente: uns correm, outros apenas assistem, muitos recordam.

Nas varandas, nos passeios, na muralha, na baía, há olhos atentos e corações apertados, a torcer pelo capinha destemido, a rir com a fuga trapalhona, a aplaudir o touro que, majestoso, se impõe com a sua brava presença.

Ali, entre o cheiro das bifanas das tascas e o som das gargalhadas, não há apenas tradição — há pertença. A tourada no areal é feita tanto de coragem como de comunidade. De touros e de ternura. De adrenalina e ancestralidade.

E mesmo nos dias de hoje, em que grandes superfícies comerciais e globalizações culturais tentam uniformizar tudo, a Praia da Vitória continua a libertar o seu touro no areal — como quem diz: Estamos aqui. Somos quem somos. E somos muitos.


As Festas da Praia da Vitória são uma tradição anual enraizada na alma desta cidade.

Celebradas em agosto, são mais do que um evento: são um chamamento ao coração das pessoas, um ritual de alegria que une gerações e transforma a cidade num palco vivo de emoções.

Quando agosto chega, a Praia da Vitória deixa de ser apenas cidade — torna-se cenário de encantamento.

As ruas ganham alma e voz. Os sons dos concertos ecoam de vários palcos, misturam-se no ar como trilha sonora de um verão inesquecível. Há fado e cantoria, carnaval e folia, marchas e folclore, batuques e guitarras, vozes que arrepiam e ritmos que fazem dançar — e por todo o lado, há corpos que se soltam, corações que batem no compasso da música.

No ar, há os aromas ricos da Feira Gastronómica, onde sabores de outros lugares se dão a provar: doçaria, enchidos artesanais e pratos que contam histórias em cada garfada. E mais abaixo, a Feira de Artesanato deslumbra com o talento das mãos que criam — bordados finos, cerâmica delicada, peças únicas com alma insular.

As luzes bordam as ruas como colares suspensos no céu. Arcos iluminados, fachadas enfeitadas, candeeiros que brilham como estrelas baixas. A cidade reluz, e a multidão torna-se mar: passos apressados de crianças, mãos dadas de namorados, encontros de amigos, reencontros de famílias inteiras.

Pelo caminho, o riso corre solto entre as bancas, as tasquinhas, os insufláveis. Nos cortejos, brilham as vestes, a criatividade e as vibrantes cores da imaginação. Os cortejos infantis fazem rir e admirar, trazendo o encanto às ruas como num teatro aberto ao céu. Os alegóricos desfilam como sonhos sobre rodas, trazendo memórias de vivências que não voltam mais.

No areal, cumpre-se uma tradição que vibra com sangue e areia — a tourada à corda, entre Ué touro! Ué touro, gargalhadas e corridas. Um momento que une o povo na sua coragem e no seu riso.

E quando a noite se deita sobre a baía… o céu desperta em fogo. As estrelas cedem lugar às explosões de cor e luz, e no fim, o fogo de artifício rasga o escuro com promessas luminosas, e os olhos voltam a ser de criança.

As Festas da Praia não se explicam, vivem-se. São som, cheiro, cor, toque e sabor. São memória que se escreve com os cinco sentidos, e alegria que se solta sem pedir licença. Porque nesta terra, quando agosto chega… a vida celebra-se por inteiro.


No coração antigo da Praia da Vitória, onde o tempo caminha devagar e a rotina ainda se entrelaça com os rostos conhecidos de sempre, vive um mercado que pulsa no compasso das madrugadas e dos gestos simples. Não tem o brilho de centros comerciais modernos, nem os espelhos de néon que piscam promessas nas grandes superfícies. Mas tem algo mais antigo. Mais fiel. Tem alma.

Este mercado nasceu do ventre da necessidade e do sustento. Num tempo em que a vida se media a gramas e a tostões, quando os sorrisos vinham embrulhados em papel pardo e os trocos tilintavam como música de confiança entre vizinhos.

As bancas de madeira, gastas por mil histórias de partilha, dividiam o espaço com o cheiro do peixe fresco, com a doçura tímida das bananas da terra, com o tilintar das moedas trocadas por um ramo de salsa ou um naco de queijo.

Naquele tempo, competia apenas com as mercearias do bairro, com os balcões de madeira escura onde o fiado era mais comum que o dinheiro. Era ali, entre conversas e sacos de pano, que se construía o laço invisível de uma comunidade.

Mas os tempos correram — como tudo corre nas ilhas entre a calma e a pressa. Vieram as grandes marcas, os carrinhos metálicos, os corredores frios e impessoais. E o velho mercado, pequeno e sem pretensões, viu-se a lutar com gigantes.

E, no entanto, resistiu.

Porque há quem prefira a mão estendida da vizinha à frieza das caixas automáticas. Há quem encontre beleza na lentidão de escolher um tomate maduro, ou na partilha de receitas entre a vendedora e o cliente, como se fosse um segredo passado de geração em geração.

Hoje, com uma nova alma, aberta ao artesanato, à restauração e à reinvenção, o Mercado Municipal da Praia da Vitória continua a ser mais do que um espaço de comércio. É um refúgio de memórias, um santuário da confiança, um espelho da cidade que não se esquece de onde veio, mesmo quando olha o futuro nos olhos.

E enquanto houver quem o visite com os olhos brilhantes da infância, enquanto houver cheiro a peixe fresco e vozes que digam bom dia com verdade, este mercado — simples, pequeno, eterno — continuará a pulsar como o coração da Praia.


Nas planícies onduladas do Ramo Grande, onde o verde beija o céu e o mar nunca dorme, ergue-se a Base Aérea das Lajes — um coração de aço e silêncio que pulsa entre continentes, como uma sentinela no meio do oceano.

Há mais de oito décadas, quando o mundo ardia em guerra e os céus eram cruzados por incertezas, Portugal — discreto e determinado — abriu caminho ao voo. Em 1942, as primeiras máquinas pousaram em terra batida, um rascunho de liberdade, trazendo consigo um pacto com o tempo. No ano seguinte, vieram os americanos, firmes e visionários, que a pavimentaram com betão e propósito, alargando o horizonte com uma estrutura que desafiava distâncias e tempestades.

Assim nasceu um dos maiores segredos do Atlântico: uma pista, com mais de três mil metros, uma veia aberta no meio do oceano, alimentando e acolhendo gigantes do ar, um porto celeste onde se unem a urgência militar e o sopro humanitário.

Aqui, aviões não apenas atravessam oceanos — salvam vidas. Aqui, helicópteros partem contra o vento em missões de resgate. A Esquadra 751, com os seus Pumas valentes, e a Esquadra 502, com os Elefantes do transporte, não conhecem limites. E desafiam a noite, a bruma, o imprevisto.

Lado a lado com a bandeira portuguesa, ergue-se ainda a presença norte-americana, discreta mas firme. A Lajes Field foi, durante décadas, palco de reabastecimentos secretos, refúgio para naves espaciais da NASA, trampolim para operações no deserto ou no gelo, e lugar de passagem para líderes e soldados. Um abraço diplomático e militar entre dois mundos — o velho e o novo.

E assim, ao lado da Força Aérea Portuguesa, cresceu uma cidade dentro de outra.

Mas o tempo, como o mar, nunca cessa. Vieram mudanças, cortes, partidas. Famílias que se despediram, escolas que fecharam, vozes que ecoaram pela última vez nos corredores. Ainda assim, a Base permanece, orgulhosa e serena. Porque mais do que aviões e acordos, ela guarda uma promessa: A de ser ponte. A de ser farol. A de ser chão firme em tempo de tempestade.

Hoje, a Base Aérea n.º 4 continua a vigiar o Atlântico com olhos atentos e asas preparadas. Sustenta a soberania de um arquipélago e, com ele, a dignidade de um país inteiro. Apoia missões internacionais, patrulha a nossa zona económica exclusiva, e lembra ao mundo que os Açores não são apenas um ponto no mapa — são vértice de futuro, marca de socorro, vigia de paz.


Há lugares onde o silêncio pesa mais do que mil vozes. Lugares onde o vento sussurra nomes que a história quase esqueceu. Num recanto singelo da Praia da Vitória, entre o verde que beija o mar e o azul que embala memórias, ergue-se um cemitério pequeno — mas imenso em significado. Ali repousam os ecos de um tempo em que o mundo ardia em guerra, e os céus dos Açores eram cruzados por asas de ferro e esperança.

No dia 14 de março de 1945, o céu chorou. Um avião da RAF — o Liberator EW626 — não conseguiu vencer a montanha. Naquela manhã nublada, 19 almas jovens, cheias de missão e futuro, caíram com ele. Caíram, mas não desapareceram. Foram semeadas neste solo atlântico, e dele brotaram histórias, lágrimas e flores — flores que ainda hoje se curvam, como se soubessem.

E não estão sós. Ao seu lado, dormem outros companheiros de asas e de fado: homens que também perderam a luta contra o tempo, o motor ou a sorte. Há ali britânicos, checos, um polaco, um marinheiro da Marinha Mercante… Todos unidos, não pela pátria, mas pela paz que só a morte lhes concedeu. São 47 sepulturas da Commonwealth, quase 50 histórias interrompidas, a lembrar-nos que mesmo nas ilhas onde se dança o folclore e se partilha alcatra, o mundo também chegou com dor.

Mas há beleza no gesto de lembrar. Há dignidade na brisa que percorre esse campo simples. Há gratidão na pedra gravada, na cruz branca, na presença dos que por ali passam e fazem silêncio.

Porque a memória é também um farol. E aqueles que jazem ali, no cemitério dos ingleses da Praia da Vitória, não vieram em vão. Vieram para que o amanhã tivesse outra cor. Para que hoje, em liberdade, possamos olhar o céu — e sonhar sem medo de cair.


Há 23 anos, nasceu a Marina da Praia da Vitória — um abraço novo ao mar antigo, uma janela aberta entre as velas do presente e os sorrisos do passado.

Em 2002, a cidade ofereceu ao seu litoral um espaço onde o mar se tornasse casa para navegantes de mil destinos, acolhendo embarcações e sonhos, vindos dos quatro cantos do Atlântico.

Mas esta baía já conhecia o ritmo dos remos e o sal das mãos.

Muito antes da marina, havia ali um porto de pescadores, feito de barcos pequenos, homens valentes e redes fiéis ao pão de cada dia.

Era um porto modesto, mas pleno de vida. A sua alma não estava nas pedras — estava no espírito da comunidade, na coragem de enfrentar o mar, na arte de saber voltar.

Em 1927, esse porto encontrou forma: um cais municipal foi projetado e construído sob presidência de António Jacinto Ázera.

Foi o primeiro gesto oficial para abraçar com estrutura aquilo que já existia em essência: uma relação vital entre a vila e o oceano.

O cais era firme, funcional, e logo se tornou centro de atividade e de progresso.

Entre 1954 e 1955, o pontão que ainda hoje protege a Marina começou a erguer-se com força e intenção.

Foi construído pelas Forças Norte-Americanas da Base das Lajes, não só como barreira às tempestades, mas como símbolo do tempo em que o Atlântico uniu continentes — por mar, por ar e por necessidade.

Assim, a Praia da Vitória foi desenhando o seu perfil marítimo com mãos locais e sopros internacionais.

E quando a Marina finalmente nasceu, foi como se as pedras, os barcos, os ventos e os homens dissessem em uníssono: “Estamos prontos para o futuro.”

Um futuro de vela ao alto, de porto seguro, de cidade aberta ao mundo.

E hoje, ao passear pelos passadiços da Marina, podes ouvir no murmúrio das ondas: Quantos barcos já ali se amarraram cheios de histórias? Quantas despedidas e reencontros desenhou aquele cais? Quantas gerações vivem neste olhar de frente para o mar, onde a modernidade se ergue sobre raízes tão fundas?


Hoje (20.06.2025), celebramos 44 anos de cidade, e muito mais do que isso: celebramos séculos da alma de um povo, que sempre resistiu e nunca deixou de sonhar.

Na Praia da Vitória, há tradições que aquecem o coração — como o doce do Conde a derreter-se na boca — e há futuro a germinar em cada escola, em cada porto, em cada jovem que aqui cresce com raízes no passado e olhos no amanhã.

Foi neste pedaço de Atlântico abençoado que, um dia, o mar se abriu à esperança e deixou passar as velas dos primeiros povoadores.

Corria o século XV quando Jácome de Bruges, flamengo enviado pelo Infante D. Henrique, tocou esta terra com o seu destino. Fundou-se uma vila entre campos férteis e mar generoso — onde os ventos sabiam segredos de longe e os corações batiam ao ritmo das marés.

A Praia cedo se ergueu como mãe de coragem e filha do tempo. Em 1480, já se vestia de vila, com o comércio a fervilhar e a fé a elevar torres.

No seu coração, em 1582, D. António, Prior do Crato, foi aclamado rei — num eco de resistência que atravessaria séculos.

E em 1641, num gesto de audácia e amor à pátria, foi o praiense, Francisco Ornelas da Câmara que proclamou D. João IV, restaurando a independência com a firmeza dos justos.

Mas o momento mais heroico da Vila viria em 11 de agosto de 1829: a Batalha da Praia.

Quando os canhões miguelistas se anunciaram ao largo, o povo uniu-se, armado de convicção e coragem, e defendeu a liberdade com unhas, alma e razão. A vitória foi tão clara quanto o céu depois da tormenta. E foi reconhecida: em 1837, por decreto régio, a vila passou a chamar-se Praia da Vitória.

A bravura da cidade, no entanto, não se limita à guerra. Em 1841, a terra tremeu. A “Caída da Praia” deixou casas em ruínas e almas em cinza. Mas Silvestre Ribeiro, com mão de estadista e coração de irmão, conduziu a reconstrução com dignidade, traçando um novo traçado sobre feridas antigas.

Mais tarde, já no século XX, os céus abriram-se novamente — desta vez para os aviões.

Com a Base das Lajes, vieram novas vidas, novas culturas, novos caminhos. O comércio cresceu, a educação fortaleceu-se, e a Praia tornou-se ponto de encontro entre o mundo e a ilha.

Foi então, finalmente, em 20 de junho de 1981, que chegou o reconhecimento há muito merecido e os ventos de uma nova esperança: a elevação a cidade.

Cidade com nome de vitória, corpo de Vila e esperança de um povo. Uma cidade que nasceu do mar, cresceu com a força de quem a ama e nunca deixou de sonhar.

E agora? — Agora olhamos em frente. Virão novas vitórias, novas ideias, novos tempos. Porque é sempre tempo para superar as cicatrizes de uma esperança por cumprir.


Na enseada ampla da Praia da Vitória, onde outrora desembarcaram bravos e partiram heróis, ergue-se hoje o Porto Oceânico — uma artéria vital que pulsa ao ritmo do progresso. Ali, entre o murmúrio das ondas e o labor constante dos cais, a infraestrutura portuária não é apenas obra humana, mas ponte entre mundos, janela aberta sobre o Atlântico vasto.

Este porto, moderno e robusto, não serve apenas à cidade que o acolhe; ele alimenta o desenvolvimento da ilha Terceira, abraçando navios de carga, iates audazes, plataformas energéticas e cruzeiros vindos de terras longínquas. Cada embarcação que ali fundeia traz consigo trocas, promessas e novas rotas de esperança.

Ao longo dos anos, tornou-se pilar económico e estratégico da região, facilitando o comércio, promovendo o turismo, acolhendo iniciativas industriais e energéticas, e servindo também como ponto-chave na geopolítica atlântica. É ali que o presente se ancora e o futuro se lança ao mar.

Mais do que porto, é memória viva da coragem de uma terra que sempre ousou enfrentar o oceano — e vencer.


Na velha casa senhorial da Praia da Vitória, onde as janelas se abriam para o Atlântico e os ventos sussurravam ideais de liberdade, havia um perfume que se entranhava nas pedras e nos corações: o aroma quente e delicado de um pudim de batata, doce como a alma de quem o provava.

Teotónio de Ornelas Bruges Paim da Câmara, Conde da Praia, homem de espada erguida pela liberdade e pensamento nobre, levava à mesa tanto o rigor das batalhas como o consolo das doçuras. Na sua cozinha, as mãos sábias das cozinheiras moldavam o silêncio em açúcar e especiarias, e do barro quente nascia o pudim que o conde jamais dispensava — um segredo humilde feito de batata, mas elevado à realeza do paladar.

Com a morte do conde e a dispersão das suas cozinheiras, o doce ganhou asas. Entrou noutras casas nobres, onde foi ganhando nova forma, nova textura, novo nome: a queijada do Conde da Praia da Vitória. Tornou-se estrela discreta em mesas festivas, doce de cerimónia e saudade, até que, como tantas memórias preciosas, se escondeu no fundo do tempo, adormecida.

Mas o que a alma não esquece, a tradição resgata. E assim, pelas mãos do pasteleiro João Fernandes Rocha, renasce esse sabor antigo — névoa doce que se desfaz na boca e desperta lembranças que nunca vivemos, mas que reconhecemos como nossas. A batata, improvável heroína, junta-se às especiarias para contar, em cada dentada, a história de um povo, de um conde e da ternura escondida nas coisas simples. É um doce que não alimenta apenas o corpo, mas acende no peito a doçura ancestral de uma ilha onde até a resistência soube ser celebrada com açúcar.


Na Praia da Vitória, onde os ventos do Atlântico sussurram segredos antigos às muralhas do tempo, ergueu-se, há séculos, uma casa de coração aberto: a Santa Casa da Misericórdia.

Foi das primeiras a nascer na ilha Terceira, talvez entre preces e promessas, talvez com o sopro de Deus a guiar mãos humanas. Ali se não mediu o valor pela riqueza, mas pelo gesto — o pão partilhado, o doente amparado, o órfão acolhido. Foi templo de bondade e abrigo de esperança, num tempo em que as dores não tinham nome e a miséria vestia o rosto de muitos.

Inspirada no espírito de D. Leonor e nas misericórdias que por todo o reino floresciam, a da Praia brotou como flor de ternura num solo de fé, espelhando o que há de mais puro na alma de um povo: o cuidar do outro como quem cuida de si.

Durante séculos, resistiu ao esquecimento. Quando a terra tremeu em 1841 e a cidade tombou nas ruínas da “Caída da Praia”, a Misericórdia permaneceu — cuidando, curando, chorando com os que choravam, reconstruindo com as mãos e com a alma.

Hoje, embora o tempo lhe tenha mudado os contornos, a sua essência perdura. Em lares, em centros, em serviços discretos mas profundos, a Misericórdia da Praia da Vitória continua a ser farol na escuridão, colo no abandono, dignidade no fim da vida.

É memória viva. É herança que respira. É a prova de que, num mundo tantas vezes feroz, a compaixão tem morada, e chama-se Misericórdia.


Na costa norte da ilha Terceira, onde o mar sussurra lendas às rochas negras, ergue-se uma terra de encantamento antigo: os Biscoitos. Ali, onde a lava adormecida se fez chão, o impossível floresceu. Entre os recortes ásperos do basalto, sob o sopro salgado do Atlântico, nasceu um vinho que é memória, coragem e poesia.

Chamam-lhe Verdelho, mas o nome pouco diz da alma que nele habita. É nas “curraletas” — cercas de pedra erguidas como braços de abrigo — que as vinhas sobrevivem, abraçadas à rudeza da pedra, protegidas do ímpeto do vento e da fúria do sal. São pequenos milagres de paciência, arte e fé, sussurrando histórias de gerações que, desde o século XVI, moldaram com mãos calosas um dos vinhos mais singulares do mundo.

Este vinho não nasceu apenas da terra. Nasceu do engenho de um povo que, diante do solo vulcânico e do clima temperamental, viu oportunidade onde outros veriam abandono. A casta Verdelho encontrou refúgio nos Biscoitos e, com ela, nasceu um néctar de mineralidade profunda e perfume atlântico, uma fusão rara entre o ventre da ilha e o sopro do mar.

Veio a praga da filoxera no século XIX e devastou sonhos e vinhas. Mas a alma dos Biscoitos não se rende. Reergueram-se as cepas, renasceram os frutos. O vinho, como a história da ilha, é feito de resistência. E como tudo o que resiste, carrega uma beleza mais funda.

Para que essa herança jamais se perdesse no esquecimento, a Casa Agrícola Brum fundou, em 1990, o Museu do Vinho dos Biscoitos. Ali, entre pipas antigas, ferramentas de outros séculos e aromas de tempo guardado, revive-se a epopeia silenciosa do cultivo da vinha sobre pedra. Cada visita é uma viagem ao coração da Terceira, uma comunhão entre o passado e o presente, entre o suor da terra e a bênção do vinho.

Hoje, ao erguer um cálice deste Verdelho dos Biscoitos, brindamos à bravura dos nossos antepassados, ao solo que queima e alimenta, ao mar que beija e desafia. Brindamos à Terra que transforma cinza em fruto, e ao vinho que, em cada gota, contém um poema inteiro.


Na ilha Terceira, onde o mar se rende às pedras com carícias de milénios, a natureza esculpiu, com mãos de fogo e tempo, verdadeiros santuários de água salgada. As piscinas naturais da Praia da Vitória são testemunhas silenciosas de eras vulcânicas, onde a lava, ao encontrar o mar, solidificou-se em formas que hoje acolhem banhistas e sonhadores.

Biscoitos, com suas negras rochas basálticas, é um labirinto de piscinas naturais que se entrelaçam como veias de um coração insular. Formadas por escoadas lávicas que, ao tocarem o oceano, criaram depressões e enseadas, estas piscinas foram adaptadas para uso balnear em 1969. Desde então, locais como Calheta do Ferro e Canto Maria Caldeira tornaram-se refúgios para os que buscam o frescor do mar e a beleza bruta da natureza.

Quatro Ribeiras, situada na costa norte, é um mosaico de piscinas naturais moldadas por lava traquítica. Aqui, o mar esculpiu cavidades que se enchem de água cristalina, criando espaços de rara beleza. A presença de um antigo moinho de água nas proximidades relembra a harmonia entre o homem e a natureza nesta freguesia.

Porto Martins oferece uma baía serena onde piscinas naturais de águas calmas convidam ao mergulho. Com áreas abrigadas ideais para crianças e outras abertas ao mar, este local é perfeito para famílias e para quem busca tranquilidade. A marginal próxima permite passeios à beira-mar, onde se podem observar vestígios de antigas fortificações que outrora protegeram a ilha.

Escaleiras, na freguesia de Vila Nova, é uma praia que combina areias grossas e rochas basálticas negras, ladeada por altas arribas estratificadas pelas erupções que moldaram a ilha. A vegetação luxuriante, alimentada pelas chuvas invernais, envolve este recanto, tornando-o um lugar onde a natureza se mostra em todo o seu esplendor.

Estas piscinas naturais são mais do que simples locais de lazer; são testemunhos vivos da história geológica da Terceira, espaços onde o passado e o presente se encontram nas águas salgadas que acariciam as rochas. Ao mergulhar nelas, sentimos a pulsação da ilha, ouvimos as histórias sussurradas pelas ondas e conectamo-nos com a essência selvagem e bela dos Açores.


Foi aqui, onde o mar beija a terra com reverência, que nasceu o primeiro sopro de liderança na Terceira. Em 1456, sob a mão flamenga de Jácome de Bruges, ergueu-se a sede da capitania, primeira chama de um destino singular. E em 1480, sob Álvaro Martins Homem, a Praia foi feita Vila —nobre título gravado no coração da brisa atlântica.

Ao cair do século XV e nas alvoradas do XVI, a Praia tornava-se fonte de riqueza e de engenho. Nos seus portos, os ventos levavam sonhos e traziam açúcar e especiarias, ecoando a esperança de uma terra a florescer.

Foi aqui, em 1582, que o povo aclamou com fervor D. António, Prior do Crato, como rei de Portugal. Entre palmas e orações, o coração açoriano bombeava independência e desejo de liberdade. Mas o tempo, senhor de mudanças e lutas, trouxe os ecos do domínio filipino.

E foi então, em 1641, no adro da Matriz de Santa Cruz, que Francisco Ornelas da Câmara — homem de fibra e pátria — ergueu a voz e o gesto para aclamar D. João IV.

O povo, num só brado, jurou fidelidade à nova luz. E a soberania portuguesa renasceu como fénix na bruma insular.

A bravura da Praia, contudo, não terminaria aí. Em 1829, o rugido da guerra civil ecoou nas suas falésias. A armada miguelista, com 21 navios, tentou esmagar a esperança liberal.

Mas a terra que sabia resistir, resistiu. Com mãos calejadas, almas ardentes, homens e mulheres da Praia derrotaram o impossível. E a Vitória foi selada. D. Maria II, em gratidão, gravou-lhe na história o nome que hoje ostenta com honra: Praia da Vitória.

Nem mesmo o terramoto de 1841 — a temida Caída da Praia — conseguiu apagar-lhe o fulgor. Destruída quase por completo, renasceu pelas mãos firmes de Silvestre Ribeiro, erguendo-se mais bela, mais forte, mais justa.

E nas décadas que seguiram, com ingleses e norte-americanos no horizonte da guerra, a cidade cresceu, abriu-se ao mundo, e guardou no peito o orgulho de tudo quanto já foi.

Hoje, a Praia da Vitória repousa entre o azul do mar e o verde das serras, com a alma feita de epopeia, e os passos assentes na glória conquistada — não por impérios, mas por coragem.

Porque aqui, nesta terra, cada pedra é memória, cada rua é resistência, e cada onda que quebra na baía traz consigo o sussurro da história que não morre, mas que canta.


Dizem que tudo começou com uma rainha… Chamava-se Isabel, e tinha o coração moldado à imagem do Céu. Num tempo de fome e guerra, fez do trono altar e do palácio um império de pão. Coroou o povo com o gesto mais simples: o de repartir o que tinha, como quem consagra a vida.

Foi ela, Santa Isabel, quem primeiro ergueu a coroa do Espírito Santo não para si, mas para os outros — um símbolo que não oprime, mas consola, um cetro que não manda, mas serve, uma salva onde se oferece o que há de melhor.

E foi esse sopro antigo, vindo de Coimbra, que o mar trouxe aos Açores.

Aqui, no coração do Atlântico, o povo guardou o Espírito como quem guarda uma promessa. E com cada primavera que renasce após a Quaresma, os Açores despertam para o mais belo dos ciclos: as Festas do Espírito Santo.

Começa-se em silêncio, com o som das ladainhas, os terços rezados ao entardecer, as “alumiações” nas casas dos mordomos — onde luzes e preces se entrelaçam, e o sagrado caminha lado a lado com o humano.

Em cada semana, desde a Páscoa até Pentecostes (ou Trindade, nalguns lugares), o povo reúne-se, ora em oração, ora em convívio, porque o Espírito não separa — une. E em cada ilha, em cada freguesia, em cada casa aberta, brota o mesmo espírito de fraternidade.

Chega o domingo, e com ele a procissão: vai-se buscar a coroa, o cetro e a salva, levados por meninas de branco, como anjos de festa, com passos de reverência.

A bandeira escarlate do Espírito Santo vai à frente, bordada com a pomba branca — símbolo de paz, de promessa, de um Deus que não fala do alto, mas habita entre os seus.

Hoje vêm as filarmónicas, com sons de alegria, mas noutros tempos vinham os foliões — cantadores de fé, trovadores da alma.

Depois, o cortejo segue até ao império ou à casa do mordomo, onde a mesa está posta com o que é de todos: sopas do Espírito Santo, alcatra, massa sovada, arroz doce, vinho e sumos.Não é só um banquete — é um milagre partilhado. Ali, o Espírito desce não como fogo, mas como alimento que sacia corpo e alma.

E assim se repete, semana após semana, num crescendo de fé e comunhão, até que chega o grande final: o Domingo de Pentecostes.

Nesse dia, o céu e a terra celebram em uníssono: os dons do Espírito Santo são lembrados — sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus — e o povo, em gesto de profunda gratidão, oferece o que recebeu: pão, vinho, leite, massa sovada.

É o Bodo, o ápice da festa, onde a promessa se cumpre: ninguém passa fome, ninguém está só. O Espírito, que um dia desceu em línguas de fogo, agora desce em gestos de partilha.

E mesmo quando a festa se fecha, e os arcos são recolhidos, e as coroas guardadas, o Espírito continua a soprar — na memória das promessas feitas, no abraço de quem ajudou, no sorriso de quem recebeu.

Porque nos Açores, o Espírito Santo não é só símbolo. É presença. É luz na alma e pão na mesa. É tradição viva. É fé em forma de festa. É Deus que se dá… no meio do povo.


Na ampla concha azul da baía da Praia da Vitória, repousam quatro joias de areia e sal, testemunhas silenciosas do tempo e da coragem.

A Praia Grande, estendendo-se como um lençol dourado aos pés da cidade, já viu remos rasgar madrugadas e pescadores dobrar o lombo, descarregando do mar o sustento e os segredos. Foi ali que muitas mãos calejadas tocaram primeiro a terra depois da faina, entre redes e promessas.

A Prainha, mais pequena, delicada como um beijo do oceano, acolhe hoje sorrisos leves e corpos a dourar ao sol, mas guarda na sua intimidade a nobreza de outrora, quando o mar era ofício e esperança.

A Praia dos Sargentos, nomeada pelos ventos da história, lembra os passos firmes de militares que ali encontravam refúgio entre missões. O areal foi confidência e descanso, e hoje é lugar de paz e mergulho.

A Riviera, ainda bravia e quase selvagem, é abrigo de aves e de silêncio, um recanto onde o mar sussurra apenas a quem sabe escutar.

E sobre todas estas praias, um só coração pulsa: o da baía que já conheceu a artilharia do passado e os ecos de batalhas vencidas. Foi aqui que se escreveu parte da liberdade de um país, entre pólvora e bravura. Agora, o mesmo mar que recebeu canhoneiras acolhe iates brancos e navios que chegam sem pressa. 

Nos seus areais, locais e forasteiros rendem-se aos encantos dos banhos de mar e sol, como quem recebe um abraço de luz e sal, antigo e eterno.


Lá no cimo da serra que beija o vento, ergue-se o Miradouro do Facho — antigo farol de fogo e fé, sentinela do tempo na Praia da Vitória. Foi ali, em tempos idos, que homens acendiam fachos de esperança, guiando com lume os navegadores que rasgavam o Atlântico em busca de porto seguro. A fogueira ardia como estrela na noite, sussurrando à distância: “aqui é casa, aqui é terra firme”.

Hoje, o fogo apagou-se… mas não se perdeu o lume.

Em seu lugar, ergue-se serena e maternal, Nossa Senhora — o Imaculado Coração de Maria. Não com braços de fogo, mas com braços de luz. A sua imagem monumental, inaugurada no último dia de 1999, ergue-se com 22 metros de altura, coroando o céu, como promessa viva de proteção. Não só vela pelos praienses que ali nasceram e cresceram, mas também por todos os que chegam pela baía, pelos que partem pelos ares, pelos que sobrevoam os sonhos do Atlântico.

A cidade repousa a seus pés, em paz. A baía resplandece ao sol, como espelho do céu. E mesmo que já não haja fachos de madeira a crepitar, há uma chama mais alta e duradoura — a fé de um povo e a bênção de uma Mãe, que nunca adormece.


Na vastidão atlântica, onde os ventos sopram histórias e as nuvens desenham promessas de horizontes longínquos, a Ilha Terceira escreveu no céu o seu nome com asas de coragem. Foi na Achada, em 1930, que o coração dos açorianos bateu mais alto, ao ver pela primeira vez um avião — o nobre “Açor”, biplano Avro — rasgar os céus da ilha com elegância e esperança. Um voo breve, mas eterno, que lançou a semente do que viria a ser uma ligação vital entre o arquipélago e o mundo.

Poucos anos depois, em 1934, os olhos voltaram-se para a planície das Lajes. Ali, o Serviço de Engenharia Militar, guiado pela visão e pelo engenho, começou a moldar a terra. Compactaram o solo, ergueram futuro com as próprias mãos e prepararam o ventre da ilha para acolher a aviação moderna. A escolha era sábia — ali, os ventos eram mais brandos e o céu mais generoso.

E então, o mundo tremeu. A Segunda Guerra Mundial estendia as suas sombras e os Açores, outrora esquecidos na vastidão do Atlântico, tornaram-se peças-chave no xadrez da geopolítica. Em maio de 1941, o silêncio da planície das Lajes foi quebrado pelo rufar de botas e o rugido dos motores. Chegava um Corpo Expedicionário, vinham os aviões Gladiator e com eles o início da construção formal de um aeródromo que marcaria a história da aviação e da soberania insular.

Assim nasceu a Base das Lajes — não apenas como um lugar de partidas e chegadas, mas como um marco estratégico, uma ponte entre continentes, uma sentinela no meio do mar. Ao longo das décadas, evoluiu, modernizou-se, e fez da Terceira um farol para o mundo, onde a aviação encontrou abrigo, rumo e missão.

Hoje, embora a Base das Lajes respire a um ritmo mais lento, como que adormecida entre memórias de glória e silêncios estratégicos, permanece vigilante — meio gás, sim, mas nunca desligada. O mundo gira, inquieto, e os ventos da guerra voltam a soprar no velho continente e para lá dele. Quem sabe se, mais uma vez, esta terra de bruma e coragem não será chamada a cumprir o seu papel? Quem sabe se a planície das Lajes, com a sua história gravada na pedra e no céu, não voltará a ser ponto de apoio, de passagem, de paz e resistência? Porque quando o mundo precisar, os Açores estarão — como sempre estiveram — prontos a erguer voo.


No seio histórico da Praia da Vitória, erguido com a solenidade dos tempos, o Edifício dos Paços do Concelho desenha a sua silhueta contra o céu atlântico. Majestoso, imponente, veste-se de história e arquitetura, um testemunho do engenho humano e do pulso da cidade.

Construído em 1596, acolhe em si a harmonia do estilo eclético, onde se entrelaçam ecos do neorrenascimento e do neobarroco, como se o passado ali repousasse num abraço de pedra. A sua fachada, meticulosamente trabalhada, convida o olhar a deter-se, a percorrer cada detalhe, a sentir o peso da arte que o molda.

Ao cruzar a sua entrada, pisa-se o chão de memórias, respira-se o fôlego do tempo. O hall de entrada é um santuário de beleza rara, adornado por ladrilhos que contam histórias, por cores e padrões que desenham a alma de um passado rico. Cada parede escuta os murmúrios de debates acesos, de decisões tomadas, de sonhos que ali encontraram morada.

Mais do que um edifício, é o coração vivo da cidade, um farol onde a vida política e social se entrelaça. Um espaço que não se limita a existir, mas que vibra com a identidade da Praia, com o orgulho de um povo que o vê, não apenas como pedra e argamassa, mas como símbolo de permanência e de futuro.


Desde há 121 anos, uma harmonia ressoa, firme e inquebrantável. Filarmónica União Praiense (FUP) é uma fusão de duas almas musicais, unindo corações e sopros numa só respiração, num só compasso. Da elite aos humildes mestres de ofícios, todos resgataram na música um território comum, onde a rivalidade cedeu lugar à harmonia. Sob a batuta do padre José de Sousa Pereira, as vozes discordantes passaram-se acordes de uma mesma sinfonia, e assim, de instrumentos antes separados, nasceu uma só voz que atravessava gerações.

Nas ruas enfeitadas de cores vivas, nos coretos de outrora, nas marchas festivas, tem conduzindo os passos da alegria e da tradição. No sagrado silêncio das procissões, as suas notas elevam preces ao céu, acompanhando a fé do povo. E quando o Divino Espírito Santo se celebra, é a sua música que anuncia a partilha, que dá voz à devoção, que enche o ar com o eco de um legado que não se apaga.

E assim, há mais de um século, a FUP segue o seu caminho, sem pressa, sem esquecer de onde veio, sempre pronta para transformar qualquer momento num instante de magia sonora.


No coração da Praia da Vitória, onde os ventos do Atlântico contam histórias de coragem, ergue-se a Estátua da Liberdade em forma de mulher. Erguida em 1929, no centenário da batalha que viu a baía tingida pelo fogo da guerra, ela guarda em pedra a memória de um povo que ousou vencer.

Sonhada pelo traço de Abraham Abohbot, sua forma final não segue fielmente o desenho original, mas sua essência motiva um tributo à bravura de um tempo em que a liberdade era conquistada com sangue e aço.

No pedestal, um açor vigia os céus, e o brasão concedido por D. Maria II relembra o dia em que a Praia se tornou “Mui Notável”.

A sua apresentação foi um ato solene, selado pelo discurso de Francisco Lourenço Valadão Jr. e pelo vibrar do “Hino 11 de Agosto”, onde cada nota ecoava o orgulho de uma terra que renasceu do absolutismo para escrever o seu nome na história.

A quem passa hoje na praça, que olhe e não apenas veja. Erga os olhos para aquela estátua e deixe que ela conte a sua história. Que cada olhar atento descubra na figura da mulher altiva, no açor vigilante, no medalhão esculpido, o peso da liberdade conquistada e o eco de uma batalha que não pode ser esquecida.


A Rua de Jesus é mais do que uma simples rua. É um fio de pedra entrelaçado na história da Praia da Vitória, onde passos de ontem ainda sussurram ao ouvido dos que hoje ali passam. Desde tempos remotos, foi espinha dorsal da cidade, ligando gentes, histórias e destinos.

Houve uma época em que a Rua de Jesus pulsava com uma energia vibrante, alimentada pelo movimento constante de quem estava passando. Eram os tempos áureos, quando os americanos da Base das Lajes enchiam as esplanadas, e as lojas exibiam nas montras o reflexo de uma cidade que prosperava. O burburinho das conversas em línguas diferentes misturava-se ao tilintar dos copos e ao riso solto de quem ali encontrava um ponto de encontro. A Rua de Jesus era um palco onde a vida se desenrolava a cada esquina, com histórias que se cruzavam ao ritmo dos passos apressados e dos sonhos que por ali se desenhavam.

Palco sempre foi. Aqui desfilaram, e ainda desfilam, os corsos do Carnaval, os cortejos das festas da cidade, as marchas que dançam ao compasso da tradição. Entre serpentinas e procissões, esta rua viu de tudo: promessas feitas, amores perdidos, reencontros inesperados. Quantos corações não bateram mais forte ao dobrar uma esquina? Quantos sonhos não se acenderam sob as suas luzes festivas?

Mas o tempo, com a mão invisível, redesenha os caminhos. A presença militar e os visitantes partiram, e a rua, antes efervescente, foi-se tornando mais silenciosa. As portas, antes abertas ao mundo foram-se fechando uma a uma, deixando para trás o eco de conversas que já não voltam.

Hoje, a Rua de Jesus caminha num ritmo mais sereno, como quem relembra, mas não esquece. A vida ainda passa por ali, mesmo que nos passos mais contidos. E embora o presente seja mais discreto, esta rua continua a ser um símbolo. Porque enquanto houver histórias para contar e festividades para celebrar, enquanto houver quem nela caminhe com o coração cheio de memórias, a Rua de Jesus nunca será apenas pedra e pó. Ela será sempre o palco onde a cidade desfila o seu passado, o seu presente e os sonhos do que ainda está por vir.


Erguido à beira do mar, o Forte de Santa Catarina foi muito mais do que pedra e cal. Era um escudo contra corsários e exércitos estrangeiros, um bastião onde a bravura dos habitantes da Praia da Vitória se erguia contra o vento e a guerra. Ali, sob o olhar atento das muralhas, escreveram-se histórias de resistência, de noites em vigília e de batalhas travadas com coragem inabalável.

Agora transformado em núcleo expositivo, o forte abre as suas portas a quem deseja percorrer os corredores da história. As pedras que um dia vibraram ao som dos canhões testemunham a coragem dos que lutaram pela liberdade, e os visitantes podem sentir a pulsação de uma época de convulsões e heroísmo.

Nesta nova vida, o Forte de Santa Catarina não é apenas um vestígio do passado, mas um farol para o presente. Entre documentos, fardas, armas e relatos, conta-se a saga de um povo que, mesmo diante da ameaça, escolheu resistir. E assim, a velha fortaleza, antes silenciosa, volta a bradar, não em guerra, mas na lembrança viva dos que recusaram dobrar-se ao peso da história.


No coração da ilha Terceira, o Ramo Grande ergue-se como um relicário de tempos passados, onde a história e a cultura se entrelaçam nas veias da terra, como rios profundos que nunca secam. Foi ali, entre as suas vastas planícies, que a vida floresceu, transformando-se num antigo celeiro que alimentava a alma e o corpo da ilha.

Com o suor de gerações, os campos do Ramo Grande, alimentados pela terra fértil, se tornaram os campos dourados de trigo, nutrindo o espírito resiliente da Praia da Vitória. O seu solo, rico e generoso, alimentou uma gente que cultivava a esperança em cada grão que germinava, como um reflexo da perseverança e da conexão com a terra.

A planície, delineada pelas mãos do tempo, guarda em suas entranhas segredos de mar, e no horizonte, o Aeroporto das Lajes se ergue como um farol de encontros, onde as asas do mundo tocam a ilha, e o pulsar da modernidade se entrelaça com a tranquilidade dos campos, que nunca esqueceram o seu legado.

A arquitetura do Ramo Grande, com as suas casas tradicionais, carrega a marca de uma época que não se apagou. O “celeiro” da ilha ergue-se nas suas paredes de pedra e madeira, testemunhas de um tempo que preservou as raízes profundas da comunidade. Cada construção, cada rua, cada canto, é um pedaço de memória, uma história viva que resiste ao passo do tempo.

Geologicamente, o Ramo Grande revela-se como uma terra de contrastes e força. As serras que o delimitam, a Serra de Santiago e a Serra do Cume, são as guardiãs da terra, que parecem abraçar a planície, deixando a sua marca nas terras abaixo. O seu solo, moldado pela força dos sismos e pela ação do tempo, guarda segredos profundos, como um livro aberto à espera de ser lido, relatando a batalha eterna entre a terra e o céu.

O Ramo Grande é a memória viva, onde o presente se abraça com o passado e a geologia se lembra de si mesma, a terra que se move, que estremece, que reconcilia o fogo e a paz. No teu chão, o eco de histórias milenares permanece, como as raízes profundas que, mesmo sob os ventos da mudança, jamais se soltarão.


Na sua história de séculos, a Praia enfrentou a fúria da terra e do mar, mas nunca perdeu o brilho. O grande terramoto de 1614 varreu o que havia, deixando ruínas onde antes havia vida. Ainda assim, os Praienses, teimosos e resilientes, ergueram de novo as suas casas ao longo do século XVII, mesmo sob a sombra de pequenos abalos que insistiam em lembrar a força da natureza. 

E quando a “Caída da Praia”, em 15 de junho de 1841, voltou a testar a sua coragem, a povoação resistiu uma vez mais. Reconstruíram-se não só as paredes, mas também a alma de um povo que sempre encontra no horizonte do Atlântico a inspiração para recomeçar. 

A Praia da Vitória é isso: uma história de luta e renascimento, onde cada pedra e cada onda contam sobre um povo que, mesmo caindo, dança com a vida e se ergue ainda mais forte.


A 11 de agosto de 1829, a tranquila baía da Praia tornou-se palco de bravura e resistência. O exército absolutista, com uma imponente armada de 21 navios, tentou desembarcar nas suas margens, mas encontrou pela frente os fortes de marinha e as tropas liberais que defendiam a terra com determinação.

Numa luta desigual, entre o rugir das ondas e o ecoar dos canhões, os liberais resistiram com heroísmo e alcançaram a vitória, transformando a baía num símbolo de liberdade.

Em reconhecimento a este feito histórico, D. Maria II não só outorgou à vila o título de “da Vitória”, como também lhe conferiu a honra de ser chamada “Muito Notável”. Uma honra que ecoa ainda hoje no coração desta terra, onde a coragem encontrou eternidade.


Na curva serena da sua baía, onde o mar abraça a terra com ternura, a Praia da Vitória nasceu para o mundo, escolhida por Jácome de Bruges como morada primeira. Ali, junto ao extenso areal que desenha o horizonte e sob o céu que reflete sonhos antigos, floresceu a sede da capitania da Terceira, entre 1456 e 1474.

Com Álvaro Martins Homem a guiar o destino, a Praia encontrou sustento no pastel e no trigo, os “frutos” da terra que alimentaram gerações. Assim, em 1480, a vila foi elevada a Concelho, consagrada pelo ritmo do mar e pela perseverança do seu povo. 

Mais de 500 anos depois, cada onda que beija a areia sussurra histórias de coragem e de vida, lembrando-nos que a Praia é um poema eterno, onde o tempo e o Atlântico se encontram.