NAGASAKI

Oito décadas depois da explosão que, a 9 de agosto de 1945, reduziu a cinzas grande parte de Nagasaki, é impossível não refletir sobre o que ali se perdeu. Muito se falou, e continua a falar, sobre as vidas ceifadas, o trauma coletivo e o impacto geopolítico que a bomba atómica deixou no Japão e no mundo. Mas há uma memória pouco conhecida e raramente evocada: parte do que foi destruído naquela manhã dramática tinha sido, séculos antes, erguido com o contributo decisivo dos portugueses.

A ligação entre Portugal e Nagasaki remonta ao século XVI. Em 1543, os navegadores portugueses foram os primeiros europeus a aportar ao Japão, inaugurando uma rota marítima e cultural que ligava Lisboa a portos distantes como Goa, Malaca, Macau e, por fim, Kyushu. Pouco depois, missionários jesuítas e comerciantes lusos encontraram na baía de Nagasaki um local estratégico para o comércio com o arquipélago. O relevo recortado e montanhoso lembrava-lhes Lisboa, a cidade das sete colinas. Foi essa semelhança que inspirou e orientou o traçado urbano de um porto seguro e bem protegido, com cais, armazéns e ruas desenhadas à maneira europeia.

A partir dessa base, estabeleceu-se um ponto de encontro único no Extremo Oriente. Ali cruzavam-se seda chinesa e vinho português, porcelana japonesa e açúcar de Macau, livros e mapas, pergaminho e papel de arroz. Não era apenas comércio: havia intercâmbio de técnicas de construção naval, de métodos agrícolas e até de práticas artísticas. A influência lusa entrou também no idioma japonês — palavras como pan (pão), tabako (tabaco) ou biru (do inglês beer, via português) são vestígios dessa primeira globalização.

Detalhe de uma tela pintada pelo Japão mostrando uma nau portuguesa no porto de Nagasaki, um posto comercial português entre c. 1571 e 1639. Tela pintada por Kanō Naizen. (Museu da Cidade de Kobe, Japão)

O intercâmbio linguístico fez-se nos dois sentidos. Do japonês chegaram ao português termos que hoje usamos sem pensar na sua origem. Catana, quimono, samurai, bonsai, biombo ou tempura são alguns exemplos. O caso de biombo é particularmente curioso: vem de byōbu, literalmente “protetor contra o vento”, uma peça de mobiliário que fascinou os europeus pela delicadeza e funcionalidade. Já tempura é herdeira da palavra latina tempora, associada aos dias de jejum, e ganhou no Japão uma identidade culinária própria.

Nagasaki não foi apenas um entreposto comercial. Tornou-se um espaço de convivência cultural e religiosa. Igrejas ergueram-se junto a armazéns, e artistas japoneses começaram a pintar perspetivas ao estilo europeu, influenciados pelas gravuras trazidas de Lisboa e Antuérpia. Essa convivência, porém, foi interrompida no século XVII, quando o xogunato Tokugawa fechou o país aos estrangeiros, confinando a presença portuguesa e substituindo-a pela holandesa na ilha artificial de Dejima.

Séculos mais tarde, no verão de 1945, a cidade que nascera desse encontro entre Oriente e Ocidente foi escolhida como alvo da segunda bomba atómica da História. O que a explosão destruiu não foi apenas um centro urbano, mas também um legado que tinha atravessado oceanos e séculos. Ao pensar nesse momento, é impossível não recordar que nós, portugueses, ajudámos a construir parte do que ali se perdeu.

Hoje, ao pronunciarmos palavras japonesas incorporadas no nosso vocabulário, reativamos um elo invisível que liga Lisboa a Nagasaki. A cidade japonesa, reconstruída, continua a olhar para o mar como a capital portuguesa. Ambas sabem que as águas que as separam são também as que, outrora, as uniram. É essa a lição que sobrevive ao tempo: entre Portugal e Japão, os laços não se medem apenas em distâncias geográficas, mas em memórias partilhadas que resistem à própria destruição.

Linha Cronológica – Portugal e Japão até Nagasaki (1543–1945)

  • 1543 – Chegada dos primeiros portugueses ao Japão, na ilha de Tanegashima. Introdução das armas de fogo.
  • 1549 – São Francisco Xavier inicia a missão jesuíta no Japão.
  • 1571 – Fundação de Nagasaki com apoio técnico português. Traçado urbano inspirado em Lisboa.
  • 1580–1600 – Nagasaki floresce como porto luso-japonês, com intercâmbio comercial, religioso e cultural.
  • 1600–1639 – Perseguições cristãs e fechamento do Japão ao exterior. Fim da presença portuguesa direta.
  • Séculos XVII–XIX – Palavras portuguesas permanecem no japonês (pan, tabako, koppu), e palavras japonesas entram no português (catana, quimono, biombo, bonsai, tempura).
  • 1854 – Reabertura do Japão ao comércio exterior.
  • 1945 – 9 de agosto: bomba atómica devasta Nagasaki, destruindo também parte do legado arquitetónico e urbano herdado do período português.

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor